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A experiência da felicidade

Já que estamos sentados ao redor dessa fogueira aqui na nossa Pausa no Acampamento, contando histórias, quero trazer mais uma sobre uma experiência pessoal que foi muito marcante em minha vida. E continua sendo.

Pega mais um marshmallow e mais uma xícara de chá quente.

(Sugestão de trilha para ler o artigo: Dreams – Van Halen)

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Ao cair da tarde terminamos de nos arrumar para sair. Eu sentia um misto de excitação e dúvida.

Por quê estávamos indo olhar uma guitarra tão cara para nossas condições naquela época se não iríamos comprá-la?

Ao mesmo tempo, chegar tão perto de uma Fender Stratocaster americana era demais para minha ansiedade juvenil.

Chegamos no prédio do senhor que trouxe a guitarra dos Estados Unidos e a anunciou nos classificados do jornal de domingo.

O elevador não chegava nunca. Uma demora psicológica, claro.

Fomos recebidos pelo simpático senhor que nos acomodou em sua modesta sala e depois foi no quarto para buscar o instrumento. Até aquele momento eu nunca tinha chegado perto de uma guitarra tão icônica na minha vida.

Tinha ganhado de presente uma guitarra bem mais simples anos atrás e que me acompanhava nos ensaios com a turma da rua nos playgrounds. Uma barulheira gostosa. Fruto da inexperiência musical de todos os integrantes e da qualidade duvidosa de todos os instrumentos.

Sonhávamos em tocar em festivais de música de colégios e, quem sabe um dia, fazer shows pelo mundo. Com aqueles instrumentos e com a nossa pouca experiência como músicos, era ainda um sonho muito distante. O pseudo-sucesso mesmo era à noite, quando sentávamos com todos na calçada e com os violões tocávamos um repertório que era quase todo Legião Urbana.

A porta se abriu e o simpático senhor entrou na sala com um case preto novinho, com o símbolo da Fender em baixo relevo e um sorriso indecifrável no rosto. Eu me lembro daquele sorriso monalístico até hoje quando coisas muito positivas em minha vida acontecem.

Abrimos o case que estava deitado no sofá e o mundo inteiro ficou em slow motion. Milhares de acordes e solos fantásticos começaram a tocar em minha cabeça. Era música em sua forma mais perfeita. Era música como experiência real.

Ali estava um sonho inalcançável. Eu sabia que era uma guitarra cara demais. Estávamos somente pesquisando guitarras usadas. Todas que vimos estavam em estado deplorável. Não aquela. Nova. Intocada.

De repente ouvi meu pai negociando a compra daquele sonho. E eu fiquei sem entender. Eu fiquei sem reação. Havia a possibilidade de sair dali carregando aquele case.

Vinte e sete anos depois, ao abrir o case já surrado pelo tempo e pelo uso em tantos ensaios, shows, apresentações, eu lembro de meu pai todas as vezes. Eu lembro do sorriso em ver o filho olhar para a mãe com vontade de chorar de alegria. Eu lembro de descer o elevador do prédio do simpático senhor, ainda sem entender o que estava acontecendo, abraçado com o case da Fender.

Eu tenho a clara lembrança de chegar em casa e ligar para os companheiros da banda, pedindo para que eles viessem até minha casa urgentemente. Tapei seus olhos para só abrir na frente do case. Eu lembro das bocas abertas, dos olhos arregalados, dos espantos em voz alta com xingamentos e o pedido de desculpas logo em seguida.

Cada vez que eu abro o case e pego a guitarra, todas as histórias desse sonho que se realizou voltam à minha mente. E esse sentimento reverbera em cada acorde, cada show, cada melodia e harmonia que esta guitarra toca.

Um presente, um mimo, porque eu passei no vestibular mas que tem um significado muito maior do que esse.

Essa guitarra não é somente um instrumento musical. É a história da minha vida em música.

E com ela, eu sigo em frente. Sempre.

Obrigado, de verdade, pai.

Te amo.

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Comentário

  1. O que dizer desta lembrança, experiência mestre Lau?
    A alegria foi nossa também, embora só tenha visto a Fender no ensaio, foi marcante o som da “neguinha”, seja com o Chorus ou overdrive, era uma Fender…Uma FENDERRRR !!!!